A CLT é o "casamento gay" das relações de trabalho

A CLT é o "casamento gay" das relações de trabalho, pois o "casamento gay" na verdade não tem por alvo apenas o casamento, mas as relações não-contratuais, ou seja, as relações que são baseadas em coisas não quantificáveis. O que possibilita uma relação ser contratual é que tudo o que existe (ou que é reconhecido) nela seja quantificado ou quantificável. Assim, uma relação contratual será forçosamente entre X pessoas (físicas ou jurídicas, tanto faz - o que já é um absurdo, convenhamos....), determinando que uma dá Y e a outra dá Z, no prazo de tempo W, nas condições quantificadas no texto, e por aí vai.



O "casamento gay" não é o primeiro ataque contra o casamento real (que é baseado em fatores não-quantificáveis: como quantificar o amor, a entrega de si, a renúncia, a caridade, a fraternidade, etc.?); o primeiro foi a introdução do "casamento" civil: um contrato-padrão, quantificando até mesmo percentuais de bens que pertencem a um e outro, direitos e deveres, etc., tudo contadinho minuciosamente e - este é o maior delírio da modernidade - igual para todos. Assim, o meu casamento seria, em tese, igual ao seu; eu teria os mesmos direitos em relação a minha esposa que vc em relação à sua, etc. Ora, como qualquer pessoa sabe, isso é absurdo. Cada casamento é um casamento, cada casal é um casal, cada filho é um filho, etc. As relações humanas reais são forçosamente diferentes umas das outras, mesmo quando têm fatores comuns.

A partir desta redução do casamento a uma relação contratual com todos os seus ingredientes quantificados (ao menos os ingredientes que o Estado reconhece), surge a próxima etapa: o desquite e o divórcio, a dissolução programada ou programável deste contrato (e daí as leis que definem propriedade, comunhão de bens, etc., quantificando mais e mais). A próxima etapa lógica é a abertura maior das possibilidades de contratação ("casamento gay", "casamento" polígamo ou poliândrico, "casamento" com crianças, etc.), rumo a uma abrangência maior deste tipo de contrato - e talvez até, em algumas gerações, uma fusão entre a legislação trabalhista e a de família, ambas tornando-se uma mesma faceta do direito contratual positivo.

Este processo, por tocar em algo que está no cerne da sociedade, dizendo respeito à expressão mais íntima da comunicação humana (a doação de si na relação conjugal, em todos os seus aspectos, é a maior intimidade possível entre duas pessoas: elas "tornam-se uma só pessoa"), evidentemente avançou muito mais lentamente que o mesmo processo que ocorreu em outras áreas. Assim, na área das relações de trabalho, houve um avanço muito mais rápido da destruição e dissolução dos laços naturais não quantificáveis. Primeiro isso ocorreu na Revolução Industrial, com a contratação impessoal e maciça de trabalhadores (antes alguém tinha uma relação de aprendiz com um mestre ou de servo ou meeiro com um proprietário; com a Revolução Industrial surgiu o "proletariado", a "classe operária", em que cada indivíduo pode ser intercambiado com todos as outros. Um industrial passou a contratar trocentos "operários",  não o Aprendiz João, o Contramestre Antônio, etc.).

Em seguida, dados os abusos inimagináveis que tamanha negação da pessoa levaram a ocorrer (crianças trabalhando dezoito horas por dia, etc.; isso ocorria por elas não serem mais vistas como "Fulaninho, filho de Sicrano e Beltrana", como ocorria quando crianças da mesma idade eram aprendizes, sim como mão-de-obra quantificada e impessoal, substituível quando ficasse "gasta"), a reação que surgiu foi evidentemente "resolver" o problema intensificando a causa (esta é a regra dos modernos: "mais do mesmo" é sempre a solução, como tristemente exemplificado pelo caso do Rio, onde a proibição do porte de armas causou a situação atual, que querem "resolver" proibindo o porte no país inteiro...). Passou então a existir a chamada legislação trabalhista (de que a CLT é um exemplo dos mais grotescos), que leva a impersonalização da relação entre proprietário dos meios de produção e empregado ao seu limite máximo. Não há mais sequer a possibilidade de uma escolha pessoal das condições de trabalho (que ainda seria possível a alguns - cozinheiras, vendedores, artesãos, professores... - mesmo no auge dos horrores da Revolução Industrial); todos passam a ser completamente intercambiáveis, com os sindicatos resolvendo impersonalmente em conflitos com os sindicatos patronais tudo o que diz respeito a todos os operários, doravante apenas um número, uma carteira de trabalho cheia de carimbos (ou não...).

É exatamente o que está ainda  por ocorrer na questão do matrimônio: a impersonalização da relação, a negação de toda e qualquer possibilidade de reconhecimento da relação pessoal, substituída por generalizações e argumentações contratuais. Basta ver como hoje em dia o Direito de Família está indo pela mesma senda por que já despencou o Direito do Trabalho, com cada vez mais arbitrações que vão até os tribunais de apelação mais altos, etc., vendo apenas, cada vez mais, o que a legislação positiva define como sendo a relação que foi contratada. Assim como não interessa se a pessoa quer até mesmo trabalhar de graça (ou vender suas férias inteiras, por exemplo...), não interessa se é um bom profissional ou não, etc., o patrão tem que  lidar com ele como se ele não existisse de verdade, fosse apenas uma peça intercambiável em uma máquina (tendo que pagar-lhe o que o sindicato determinou, mesmo que ele mereça mais ou menos; não podendo diminuir o salário, mesmo que o funcionário esteja de acordo; não podendo comprar as férias inteiras, mesmo que o funcionário deseje vendê-las; não podendo entregar-lhe o dinheiro do FGTS, mesmo que o empregado tenha melhor uso para ele; não podendo demiti-lo sem temer um processo na Justica do trabalho, mesmo que o empregado mereça... Não há relação pessoal, apenas contratual, e a desconfiança é a clave em que toda esta inóspita melodia é composta).

Ora, é este o caminho para o qual o "casamento" está avançando (ou despencando, como preferirem). No momento, a contratação de serviços pseudo-matrimoniais mútuos (pois é isso o "casamento" civil) está ainda restrita a casais que não tenham outra contratação em vigor (divorciados e "solteiros" civis). Em breve, em muito breve, esta contratação poderá abarcar outras categorias, tal como hoje em dia a legislação trabalhista já abarca não apenas os operários de indústria, mas até mesmo vendedores, carpinteiros, cozinheiras, etc. Mesmo as relações mais pessoais (babá, por exemplo!!!) já são regidas pela lei da desconfiança e da impersonalidade contratual; só este aspecto é reconhecido pelo Estado, e só ele é incentivado e trabalhado. As pessoas não são mais pessoas, mas "cidadãos", ou seja, peças impessoais e intercambiáveis da maquinaria moderna. O mesmo irá em breve acontecer de maneira mais plena com o "casamento" civil; é uma evolução (ou despencação...) natural, é a continuação do processo de impersonalização da sociedade moderna.

Uma das etapas deste processo é justamente a necessidade de retirar quaisquer vínculos não-quantificáveis da equação (evidentemente; como colocar em uma equação, logo em uma fórmula matemática "tamanho único", algo que não é quantificável?!). Daí termos tido, há pouco tempo atrás, por exemplo, a revogação do direito da esposa usar o CPF do esposo, forçando-a a tornar-se peça intercambiável (substituível por outra mulher, ou até por um homem, várias mulheres, vários homens, crianças, ou sabe-se lá qual a próxima idéia do Tinhoso) e negando até mesmo a comunhão de bens materiais que os casais costumavam ter (hoje em dia o padrão é a "comunhão parcial de bens", ou seja, só há "comunhão"- na verdade divisão potencial em partes iguais - dos bens adquiridos após o contrato de "casamento" ser firmado; tive que fazer uma procuração para minha esposa poder usar minha conta bancária!!!).

É um processo que segue analogamente ao que seguiu o das relações - menos pessoais por natureza - que são estabelecidas entre partes que trabalham juntas, e que tende ao nível de impersonalidade que a legislação trabalhista atingiu; daí eu poder dizer que a CLT é o "casamento gay" das relações de trabalho.

Mire o exemplo da "evolução" das relações de trabalho, e vc verá o que está por acontecer com o "casamento" civil.

©Prof. Carlos Ramalhete - livre cópia na íntegra com menção do autor

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